Neste dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos, gostaria de entrar
no coração desta mártir dos primórdios do cristianismo (século II) e
aprender com ela duas lições muito fortes na vida da primeira cantora do
cristianismo: Maria. Duas mulheres e duas lições. São como as duas mãos
de um instrumentista que precisam estar bem sincronizadas para executar
seu instrumento. São como o dois lados do coração que precisam pulsar
ao rítmo da sístole e da diástole para garantir a vida. São como a
dinâmica dos passos que exige sempre que um pé esteja na terra e o outro
não para que possamos caminhar. Estas duas lições essenciais para
qualquer músico que busca a santidade são a “mística” e a “missão”.
A Mística
Naquele dia a jovem de Nazaré estava em silêncio e ouviu a voz do
anjo Gabriel. Mais do que ausência de palavras, o silêncio fecundo que
dá origem à música inspirada é feito de sintonia. Não basta calar. É
preciso sintonizar. O silêncio é a matéria prima de toda canção. Como
pode um pintor fazer sua pintura se não tiver onde colocar suas tintas e
projetar a imagem que já existe em sua imaginação? O quadro branco onde
o músico pinta suas notas e pausas é o silêncio da prece. Poderíamos
chamar isso de “quietude”. É uma atitude orante e atenta aos céus que
sempre se abrem para os místicos. Porém, a iniciativa da canção não é
nossa. Maria escuta uma palavra que vem de Deus. Nela esta Palavra vai
se encarnar. Precisamos passar por este momento receptivo de escuta para
que sejamos, depois, um eco criativo do Criador. Não sou eu quem canto.
É Deus quem canta em mim. Assim vai sendo tecida a música mística.
Maria cala e escuta. Mas diante das palavras do anjo ela fica
“maravilhada”. Este é um passo típico do músico ungido: a capacidade de
se encantar, de ficar perplexo e até um pouco perturbado pelas palavras
que ouve Deus falar em seu coração. Em seguida a inspirada Maria
coloca-se a pensar no que significaria tudo isso. Não basta ficar em
êxtase. É preciso estudar, refletir, ler, pensar no que significa esta
inspiração que estou tendo agora. E, finalmente, Maria arrisca uma
pergunta: “Como?” Aqui passamos da recepção passiva e chegamos na
pró-atividade do processo criativo. Não somos simples intérpretes
qualificados da voz de Deus. Ele nos quer como “parceiros” nesta
composição. Maria escuta atentamente as explicações do arcanjo Gabriel.
Existem músicos que vivem da ilusão de que uma canção vem como que num
passe de mágica. Não. O talento é 10% inspiração e 90% transpiração. É a
hora do exaustivo ensaio. Ensaiar sem ninguém vendo seu show de
tentativas e erros é uma forma de viver a santidade musical. Após tudo
isso vem a hora da resposta de Maria: “Eis-me aqui; faça-se em mim sua
Palavra!” Volta a dimensão receptiva. Deixe Deus fazer a obra em você.
Santa Cecília também viveu esta atenção ao anjo da Guarda que Deus
colocou em sua vida para proteger seus valores. Ela viveu esta dinâmica
da mística a exemplo de sua mestra e mãe, Maria.
A Missão
O “eis-me aqui” de Maria revelou que ela era “serva” do Senhor, ou
seja, ministra da Palavra encarnada definitivamente em seu ventre no seu
coração. Curiosamente ela não estaciona na mística. Aquela que é
disponível aos céus, na figura de Gabriel, é solidária com a terra, na
pessoa da prima Isabel. E ela sai às pressas para transformar a
inspiração em serviço. Não bastou a mística para gerar sua canção. Era
preciso passar pelo caminho do serviço solidário. Aqui acontece uma cena
maravilhosa. Ao encontrar com Isabel a voz inspirada de Maria contagia
Isabel que fica entusiasmada, ou seja, cheia de Deus. Este é um papel do
músico cristão: entusiasmar a comunidade; animar os que estão no
caminho, muitas vezes desanimados. Santa Cecília foi um exemplo de
entusiasmo contagiante. Sabemos por alguns relatos o modo como ela
contagiou seu noivo pagão, Valeriano, que acabou se tornando cristão
fervoroso a ponto de converter seu irmão Tibúrcio. Os dois se mantiveram
firmes na fé até o martírio. A música inspirada e solidária nos
habilita para contagiar as pessoas.
A Canção
Após este itinerário de mística e missão lemos no capítulo 1 de Lucas
que Maria e Isabel cantaram. Esta magnífica canção mistura estas duas
lições – mística e missão – de modo primoroso. É uma canção que começa
em chave pessoal – minha alma – e termina convocanto todo o povo para
cantar, desde Abraão e toda a sua descendência para sempre. Não é cristã
uma canção que fique somente no singular – eu e Deus. Maria nos ensina
que a prece cristã reconhece que o Pai é “nosso” e o pão também é
“nosso”. A segunda característica desta canção integral e integradora é
que ela une louvor e clamor. Não tem medo de engrandecer o Senhor nem de
pedir que os orgulhosos e prepotentes sejam derrubados de seu trono.
Nossas liturgias não podem ser resumidas no louvor. Deus continua
querendo ouvir o clamor do seu povo. Neste sentido é dramática a cena do
martírio de Santa Cecília que impactou fortemente o imaginário cristão
durante séculos: morreu cantando e exortando os irmãos. Séculos depois
seu corpo foi encontrado incorrupto, íntegro. Isto nos ensina que a
música precisa ser integral. Ela cria um ambiente salutar na comunidade.
Vivemos em um mundo poluído por tantas canções que desintegram. Que a
nossa canção seja como a magnífica prece de Maria e de Cecília: um
testemunho de que a vida sempre tem a palavra final.
Pe. Joãozinho, scj (João Carlos Almeida).
Doutor em Teologia (PUC-SP), Educação (USP) e Espiritualidade (Gregoriana – ROMA).
Professor de Doutrina Social da Igreja e Espiritualidade na Faculdade Dehoniana, Taubaté-SP.
Autor com Pe. Zezinho, scj do livro “Chamados a cantar a fé” (Editora Santuário).
E-mail: padrejoaozinhoscj@gmail.com
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