Encarar uma doença grave como o câncer é algo extremamente exigente,
fisicamente e emocionalmente. Não apenas para quem está doente, mas
também para a família inteira, para todos que estão ao redor. Vivenciar
tão de perto a doença acaba nos deixando um pouco doentes também. As
coisas mais simples do dia a dia se tornam complexas e desafiadoras.
Meu pai estava no quarto ciclo de quimioterapia, reagindo muito bem
ao tratamento e com alta médica prevista para os próximos dois meses.
Estava ainda mais debilitado em consequência do enfrentamento da doença,
agressiva e destruidora. Porém, surpreendentemente forte e determinado,
de ânimo resoluto e vontade tenaz. Tinha a certeza de que passaria por
tudo aquilo e ficaria bem.
Em meio a essa feliz expectativa, fomos impactados, como quem sente
um piano caindo sobre si, com a notícia de que seu cérebro estava
praticamente tomado e já não havia mais nada a ser feito. Radioterapia,
quimioterapia, cirurgia…NADA resolveria o problema. E assim, da noite
pro dia, meu pai se tornou um paciente terminal.
Atordoados por essa “sentença de morte” fomos sendo orientados pela equipe médica dos próximos passos, de tudo o que estaria por vir e que, apesar do “nada” em termos de tratamento curativo, havia muito o que ser feito. Era preciso dar a ele o máximo conforto possível.
Atordoados por essa “sentença de morte” fomos sendo orientados pela equipe médica dos próximos passos, de tudo o que estaria por vir e que, apesar do “nada” em termos de tratamento curativo, havia muito o que ser feito. Era preciso dar a ele o máximo conforto possível.
Conforto? Soava contraditória demais essa palavra. Queríamos muito
mais: a possibilidade de tratamento, a esperança de cura, toda e
qualquer melhora mesmo que levasse muito tempo e independente de quais
esforços fossem necessários. Queríamos a certeza de tê-lo muito mais
tempo ao nosso lado. Mas isso nunca esteve em nossas mãos, tão pouco nas
mãos dos médicos. Foi preciso encarar a realidade com fé.
Meu pai precisava de cuidados especiais. Necessitava ainda mais da
nossa presença e da força do nosso amor. Passamos a ser de tudo um
pouco: cuidadores, motoristas, enfermeiros, nutricionistas, médicos.
Seriam minutos, horas, dias, semanas…. a gente perde a noção do tempo e
muda a forma como o conta. Só tínhamos o “hoje” e ele precisava ter um
valor de eternidade para nós.
A verdade é que não somos preparados para perder alguém, mesmo
sabendo que a morte chega para todos. A doença traz muito sofrimento,
mas também é uma visita de Deus em nossa vida, que faz emergir, como que
um vulcão em erupção, nossos valores, nossas virtudes, nosso caráter.
Revela o que temos de mais nobre, revela a nossa alma.
Ali, em família, com a mãe e meus irmãos, foi preciso ter uma das
conversas mais duras de toda a nossa vida. Foram muitas lágrimas,
daquelas que saem grossas e ininterruptas. Na mesma “sala rosa” que
sempre foi o nosso lugar de encontro, o cenário familiar de tantas
outras conversas, de grandes notícias, de celebrações, de papos sérios,
sempre junto do pai e da mãe. Só que agora sem ele e para tomarmos
decisões juntos, por ele, e para um apoiar o outro diante do drama que
vivíamos. A nossa escolha: amar muito, amar “tudo”, amar até o fim.
Nossa meta se tornou oferecer a ele o melhor de todos os confortos:
voltar para casa e lá ser cuidado até seu último suspiro, dando o que
tantas vezes recebemos dele e, de modo especial, preservando sua
dignidade de ser humano.
Passamos muitos dias, também o Natal e Ano Novo no hospital e, por
fim, conseguimos, com muito esforço e correria, orçamentos e ligações, e
com todo suporte da equipe médica, transformar a sala de casa num
verdadeiro quarto de hospital.
“Pai, onde estamos?”. “Estamos em casa”, disse ele, com aquela voz
rouca e fraquinha. Essa resposta foi como que um feixe de luz a iluminar
nossos corações.
Ele não deixou de ser quem é por estar naquela cama hospitalar no
meio da sala, usando sonda e recebendo soro. Mesmo sem o controle de
suas faculdades ou quando foi perdendo a consciência, ele continuava
sendo o João da minha mãe, o nosso “papis”, o “grandão”, o “Jhon”…
continuava sendo o esposo, o pai, o sogro, o tio, o cunhado, o grande
amigo. Tudo se foi e ficou só ele, na limitação da condição humana, mas
na grandiosidade do seu “ser”, na sua essência, naquilo que ele plantou e
cultivou em cada um. De fato, isso nem a doença ou morte são capazes de
roubar. É o que fica para sempre, pois foi construído ao longo da vida
em cada gesto, atitude, palavra e assim edificado no profundo do
coração, no íntimo de nossas almas.
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